Todos temos nossas saudades, nossos momentos que desejávamos eternos. Momentos que ficaram, imortais. Ou se perderam no tênue e frágil véu da memória. Todos temos nossas saudades, nossos momentos que desejávamos eternos. Momentos que ficaram, imortais. Ou se perderam no tênue e frágil véu da memória. Falarei aqui de um homem cuja profissão era, de certo modo, imortalizar instantes que, não capturados, dissipariam-se na memória fugidia das pessoas. Eternizar celebrações, momentos de felicidade, de alegria, encontros. Mas quem se incumbirá de imortalizar a memória desse homem? Esse homem que desapareceu para sempre, como todas as fotos não batidas. Como todos aqueles sorrisos desperdiçados e amores olvidados. Deixe-me então lhes falar um pouco desse homem, cujo ofício era o de imortalizar em pequeninos instantâneos a felicidade e sorrisos, alegrias e celebrações alheias. Quem se incumbirá de imortalizar a sua figura, o seu sorriso, a sua (in)felicidade?
Ele era um homem da noite. Seu nome? Antônio. Um italiano, que chegou ainda criança ao Brasil, aos 14 anos, em 1952. Veio num navio, numa viagem de vários dias. Numa jornada corajosa e solitária, viera sozinho, sem pai, mãe ou qualquer outro parente que lhe tomasse pela mão e lhe encaminhasse pelos bons caminhos do novo mundo em que resolvera aportar. Apenas uma criança em busca de um sonho de felicidade.
Não se sabe ao certo – só ele nos poderia relatar, não fosse a finitude dos homens e das coisas – as venturas e desventuras, as dores, as alegrias e as dificuldades, os caminhos que o conduziram até ali, até o presente. O momento presente. O presente, onde ele é um dos fotógrafos da noite paulistana. Não um fotógrafo das estrelas, do high society. Mas o fotógrafo dos “comuns”. Um homem que saía de restaurante em restaurante, com sua Polaroid dependurada no pescoço (na verdade uma enorme máquina Fuji), com a qual registrava em instantâneos os sorrisos de casais enamorados (ou nem tanto), e de famílias inteiras em suas confraternizações e alegrias de ocasião.
Antônio parecia um personagem de um filme do seu compatriota Felini. Tinha um aspecto um tanto bizarro, é bem verdade. Era muito pequeno, enxuto mesmo. Frágil, delicado na aparência e no espírito – devia medir pouco mais de 1,50 m e pesar uns 50 kg. Andava sempre impecavelmente vestido, com terno, pulôver (nas noites de frio) e gravata (às vezes usava gravata borboleta). Andava num carro pequenino como ele, um BR 800 – aquele projeto de um velho empresário comunista brasileiro, que pretendia fazer, a exemplo de Henry Ford nos EUA, o verdadeiro carro popular nacional, um projeto que, como se sabe, não deu muito certo.
Nosso delicado personagem já tivera seus dias de glória. Trabalhara como fotógrafo em um grande jornal da cidade. Hoje, sem direito a uma aposentadoria que lhe assegurasse uma velhice mais tranqüila, tirava o seu sustento naquelas jornadas noite adentro, nas quais cobrava algo em torno de R$20,00 a fotografia.
Sempre desejara tirar uma foto junto com o fotógrafo Antônio, mas a minha avareza, acrescida da consciência de que aquela quantia daria para pagar boa parte da “farra” da noite, fizera-me adiar para sempre o registro das nossas afinidades, da nossa amizade desinteressada. Perdeu-se então o registro da nossa afeição cúmplice, a partilha da nossa miséria e olvido.
Quem via aquela criatura nas noites, “incomodando” a solidão e o silêncio dos casais com sua inoportuna (?) oferta (“Aceita tirar uma foto?”) não supunha o homem por detrás do fotógrafo. Um homem com uma história. Um homem que me reclamara um dia que nenhum dos seus sete filhos, dos seus dois casamentos, ligara para desejar-lhe um feliz dia dos pais. Um homem, como tantos, que já num segundo casamento, experimentava insuportável solidão e desamor. Um homem que, apesar da idade avançada, demonstrava uma inesgotável vontade de viver, e uma curiosidade enorme de garimpar novas amizades: “amizades que valessem a pena” – nas suas palavras.
– Antônio se foi, partiu para uma longa “viagem” sem volta – disse-me, Walter, o manobrista, lançando mão de uma desgastada imagem e um singelo eufemismo.
– Morreu!? Como!? – indaguei, entre surpreso e incrédulo.
– Disseram que teve um derrame, após uma discussão com a esposa. Morreu em casa – disse-me, um tanto acabrunhado, José, o garçom do restaurante onde encontrava sempre o nosso fotógrafo, e onde sempre conversávamos sobre coisas que as fotos e as aparências jamais revelam.
Tivera a última discussão com a mulher que já não amava e com a qual vivia às turras. Talvez seja realmente mais “poético” pensarmos assim, que ele partiu para uma “viagem” – como disse Walter, o manobrista. A eterna viagem de um pequeno grande homem. Um homem que, ainda menino, descera de um navio no porto de Santos. Um homem que, como tantos outros homens, desejava apenas, vez em quando, um cais para aportar os seus sonhos.
Lula Miranda - Carta Maior - Boletim dia 26-06-2007